24 março 2018

Miguel Araújo escreve sobre Diabo na Cruz

A crónica que Miguel Araújo publica na revista Visão desta semana é inteiramente dedicada a Diabo na Cruz. Leiam um excerto:
«(...) Há sempre uma ala que regozija com o bonito que é respeitar e manter "vivas" as tradições. Que lindo que é ver os jovens a respeitar e a manter a tradição. Mas na realidade não há grande coisa a ser mantida ali. Mantida talvez. Mas não há nada ali a ser transportado, carregado. Nem sequer a ser respeitado. Não quanto o que é transportado na música dos Diabo na Cruz, uma das bandas da minha predilecção, na qual pontifica o genial Jorge Cruz, que realmente parece carregar alguma coisa dum certo património genuinamente português, de cada vez que produz uma canção. No caso dos Diabo na Cruz existe uma opção clara em trazer a uma música que lhes é geracionalmente natural todo um imaginário que lhes é geograficamente próximo, sem pretensiosismos de tradição serôdia. Dona Ligeirinha, Saias, Luzia, Vida de Estrada, são tudo canções realmente portuguesas sem se submeterem a essa calda de açúcar que transforma tudo na fruta cristalizada da "tradição" e do "folclore". São melodias naturais, próximas a todos nós, mas tocadas não num cordofone regional qualquer do século XIX mas antes no cordofone no qual toda a malta do liceu aprendeu a tocar, que é a guitarra eléctrica. Caso contrário já não seria natural, seria meramente folclórico, pitoresco, auto-referente, auto-celebratório. Não seria o objecto de arte valioso que é. Não nos podemos ver, portugueses, através de outra que não esta forma de tradição, esta trans-dição. Não nos podemos ver reflectidos no espelho embaçado da fruta cristalizada. Não se trata de mudar por mudar. Não é mexer por mexer. Não é "melhorar" ou actualizar. Nem sequer inovar, pois isso já pressupõe uma vontade, uma ideia de consequência, contrária a todo o acto verdadeiramente criativo. É deixar girar com o mundo que gira. A "tradição" com t pequeno precisa de ser salva. As coisas da vida que importa carregar de geração em geração fogem a sete pés do que quer que as queira salvar. Como o diabo da cruz. Como os Diabo na Cruz.»

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